Flávio Gazzoni
Era o filho que tanto esperava. Era o pupilo. A menina dos olhos. A primeira matéria da vida de um recém-jornalista
O gravador parou. Minha mente trabalhava na velocidade da luz. A mão, por sua vez, tentava incansavelmente seguir o pensamento. Sabe aquele frio na barriga? Aquele que acompanha seus maiores sonhos? Ele estava ali. Da mesma forma que o dicionário de português sobre a mesa, o manual do foca, o Google, o café com aquele típico odor viciante e toda a minha transpiração por escrever uma matéria que emplacasse na mídia.
Lembro-me bem das críticas construtivas de grandes mestres que tive o prazer de chamar de professor. Lembro-me também dos puxões de orelha, dos textos mal escritos e das teimosas vírgulas que se espalhavam erroneamente nas frases. Em suma, todo aquele árduo trabalho de aperfeiçoamento valeu o esforço. Sou jornalista.
Envolto em pensamentos, a caneta corre, a mão corre, a mente divaga na melhor sobreposição de ideias e léxicos simples. Será que estou sendo conciso e claro o suficiente? A borracha entra em ação. Engraçado estar sentado ali, sob o olhar dos jornalistas veteranos. Vê-los escrever me transporta para um mundo em preto e branco, jamais brando, jamais neutro, mas quase perfeito. Alguém me cutuca: “Foca, o chefe me pediu para avisá-lo sobre o seu deadline, ele está mais apertado. Talvez seja necessário um pescoção”. Um sorriso nervoso e teimoso se fixa em minha face, tal como o pensamento “pseudo” positivo: um pescoção e um voto de confiança do diretor ou o meu próprio pescoço em uma bandeja de garçom.
Lembro-me dos prazos da faculdade, dos trabalhos em grupo e individuais. De Max Webber, Karl Marx, João Batista Natali, José Hamilton Ribeiro, entre tantos outros grandes mitos do jornalismo. E quanto a mim? Será que um dia estarei estampado em algum best-seller do tipo: “A História de um Foca de Sucesso”, “As Peripécias de um (des) focado” ou “O Foca de Neve e os Narizes de Cera”? Continuo escrevendo a matéria, envolto em pensamentos.
É engraçado observar certas particularidades do mundo da comunicação. Estamos em constante rotatividade no mercado e, sinceramente, ele exige do jornalista cada vez mais e, infelizmente, paga cada vez menos. O que sobra de tudo isso é o amor à profissão que não exige diploma. Assessoria, impresso, web, telejornalismo. Todos nós lutamos por um mundo melhor, utópico para os veteranos, mas para mim isto ainda continua muito latente.
Desta vez o telefone toca: “Foca, pois não?”. Uma voz conhecida do outro lado da linha: “Oi querido, consegui o telefone pela editoria de cultura. Comeu direitinho?”.
Era a senhora minha mãe.
Após fingir se tratar de um assunto de extrema importância, desliguei. Dessa vez o meu pescoço quase caiu ruborizado. Lembrei-me do filme “Jogue a mamãe do trem”. Sorri. Continuei escrevendo.
Brincadeiras a parte, cafés a parte, suadouro de todo e qualquer novato em sua primeira matéria: lá estava ela. Com um formato limpo, claro, desenrolado. Um corpo lindo de matar. Era a musa da minha vida e melhor, quase pronta para ir para a sala do Revisor. Uma pincelada aqui, um bordado ali, uma costurada na fala de fulano e, pronto! Paixão avassaladora. Mal podia acreditar que depois de todo um expediente puxado resultou numa matéria tão bem escrita. Quase fui aos prantos. É sério.
Já na sala do diretor, sentei em sua frente e não consegui segurar os pequenos espasmos imperceptíveis e calafrios microscópicos. Na sala estávamos em três: eu, o diretor e o maldito frio na barriga. O seu olhar compenetrado sobre a matéria durava uma eternidade, maior até que o tempo que tive para escrevê-la.
Por fim, o feedback:
- Foca, a matéria está linda! Sublime! Vamos publicar sim. Parabéns garoto, você vai longe.
Fechei os olhos por um instante e, nesse pequeno espaço de tempo, entre o fechar e o abrir dos olhos, senti o frio na barriga se esvaindo de mim e deixando apenas o gosto de missão cumprida. A saliva pesava na boca da mesma forma que a palavra “sublime” latejava em minha mente. A matéria seria publicada.
Desde então, meu gravador jamais parou.
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